A Mão dos Outros
I. Augusto
Acordei com o sabor de tinta na boca. Tinta. Negra, amarga, como quando em criança se chupavam canetas, só que pior. A língua estava pastosa. Cuspi no lavatório, mas não havia nada. Só saliva e o travo do vinho tinto barato da noite anterior. A mão estava ao meu lado no lençol. A esquerda. Parecia como sempre, a cicatriz no polegar da corrente da âncora há três anos, a mancha amarelada do tabaco, as unhas sujas. Mãos de operário. Mãos de porto. As pontas dos dedos estavam negras.
Esfreguei-as no lençol. A tinta espalhou-se, não saía. Levantei-me, fui à casa de banho, lavei-as com sabão. A água tornou-se cinzenta. Depois de dois minutos os dedos estavam limpos e a palma da mão ardia. Na cozinha havia um copo sobre a mesa. Ao lado, uma garrafa de vinho vazia, tombada. Mas ao outro lado, cuidadosamente dobrada: uma folha de papel. Não conhecia o papel. Demasiado claro, demasiado liso para o que eu costumava comprar, quando comprava. Sentei-me na única cadeira. Desdobreio. A letra não era minha. Demasiado elegante, demasiado controlada. A minha letra parecia arame enrolado. Aquela parecia de outro século. Curva, precisa.
Minha queridíssima Leonor,
já passaram três anos desde que ouvi a tua voz.
Não sei se ainda moras no mesmo endereço, se ainda estás na cidade.
Mas preciso de te escrever.
Pensei todo este tempo em nada mais senão em ti.
Ricardo
Li-a duas vezes. Três. Não conhecia nenhuma Leonor. Não era nenhum Ricardo. Era Augusto, quarenta e sete anos, trabalhava no porto, vivia sozinho desde que a mulher se fora há oito anos. A puta fugira. Virei o papel. Nada. Voltei a virá-lo. A tinta ainda ligeiramente húmida. Lá fora rangia o elétrico pela Rua de São Tomé. O som era tão familiar que normalmente acordava antes de ele passar pela primeira vez. Hoje adormecera. O sol já alto, entrava pelas persianas sujas em faixas estreitas sobre o chão. Levantei-me, fui até à janela. O bairro estava como sempre, as ruas estreitas, as casas tortas com azulejos a descascar, cordas de roupa entre as varandas. Uma velha vestida de preto varria as escadas. Mais abaixo alguém gritava pela gata.
Fumei um cigarro à janela aberta enquanto olhava a carta na outra mão. Talvez fosse uma brincadeira. Talvez alguém me tivesse posto alguma coisa no copo ontem à noite. O Carlos, esse cabrão, fazia dessas. Mas quem se daria ao trabalho de entrar em minha casa e escrever uma carta? Amassei o papel e atirei-o ao lixo.
No duche, a água vinha apenas morna, como sempre. Tentei não pensar no nome Ricardo. Mas ficou preso. Ricardo. Como se já o tivesse ouvido. Como se alguém mo tivesse sussurrado ao ouvido, há muito tempo. Enxuguei-me, vesti a roupa de trabalho, fumei um segundo cigarro. Lá fora tocavam os sinos de São Vicente. Estava atrasado para o turno da manhã no cais, mas isso não era novidade. Antes de sair, tirei a carta amassada do lixo e meti-a no bolso do casaco. Não sabia porquê.